A normalidade da anormalidade
17-Nov-2007

constantino_picarra.jpgA sensação que se tem é que uma espécie de cortina de fumo baixou sobre a sociedade portuguesa impedindo parte da sua população de ver e, por via disso, de pensar. Porque assim parece, talvez seja tempo de acendermos os faróis e ver para além da névoa que interpuseram entre nós e a realidade.

As sociedades humanas possuem aspectos deveras curiosos. Um deles prende-se com essa coisa espantosa e, ao mesmo tempo fascinante, que são as pessoas aceitarem como fazendo parte da ordem natural do mundo factos ou situações que, justamente, nada têm de natural ou normal. E isto acontece basicamente por uma de duas ordens de razões: ou porque as pessoas nunca se interrogaram e, em conformidade, não pensaram sobre o que todos aceitam, incluindo as próprias, mas que não é racional fazê-lo ou, reflectindo, chegaram a conclusões tão afastadas do que é publicamente visto como normal que logo "apagaram" tais conclusões do seu intelecto e passaram à frente convencidos de que só poderiam estar errados.

Eis alguns exemplos para que se perceba melhor do que estou a falar.

  1. Em Portugal, como em qualquer outro país, a riqueza produzida resulta basicamente de dois factores: capital e trabalho. Isto significa que no acto de produção intervêm os donos do capital que pagam salários, matérias-primas, máquinas, etc., trabalhadores que vendem a sua força de trabalho. Até aqui tudo normal. A anormalidade está no facto de a riqueza assim produzida ser posteriormente distribuída de forma totalmente desequilibrada, uma vez que, em regra, só um terço desta é apropriada pelo mundo do trabalho. Será que isto acontece porque o capital é mais importante que o trabalho e por isso tem de ser melhor remunerado? Atentemos na seguinte situação hipotética. Se colocarmos numa floresta um capitalista com um saco cheio de milhões de euros e este disser para o capital – "constrói uma casa" – nada surgirá da natureza. Nem uma nota dará um passo. No entanto, se em vez do capital colocarmos na dita floresta um grupo de trabalhadores e lhe dissermos – "construam uma casa" – alguma coisa se elevará da natureza, mesmo que tosca por falta de ferramentas necessárias. Daqui se prova que pode haver produção de riqueza sem capital, mas que tal nunca acontecerá sem a força de trabalho. Assim sendo, será que é lógico, racional, natural e, sobretudo, justo que os donos do capital se apropriem da maior fatia da riqueza produzida, como acontece em Portugal e em outros países ditos civilizados, quando o que verdadeiramente conta é o trabalho? O não como resposta parece não merecer qualquer dúvida.
  2. Em Portugal, como em qualquer outra sociedade organizada, cidadãs e cidadãos pagam impostos para que o Estado possa cumprir as suas obrigações para com todos nós. Estes impostos que alimentam o erário público são de dois tipos: directos e indirectos. Os directos incidem sobre as pessoas singulares e colectivas, são os casos do IRS e IRC. Os indirectos reportam-se às transações efectuadas, destacando-se aqui o IVA. Será que é justo, logo normal, que num Orçamento de Estado, como é o português, as receitas provenientes dos impostos indirectos sejam superiores às obtidas a partir dos impostos directos? A resposta é não pelas razões que a seguir se apontam. Os impostos indirectos, caso do IVA, para poderem ser operacionais têm que ser iguais para todos os consumidores independentemente dos seus rendimentos. Assim, quando, por exemplo, duas pessoas, uma ganhando dois mil euros e outra somente trezentos, compram um quilo de carne, ambas estão a pagar o mesmo imposto, o que é injusto pois possuem rendimentos diferentes, embora a "barriga" seja igual. O IRS e o IRC ao serem cobrados à percentagem são justos, pois quem mais ganha, mais paga. Então, neste contexto, não seria normal e, sobretudo, justo que a maior parte das receitas do Estado fossem provenientes dos impostos directos? A resposta é sim sem margem para dúvidas.
  3. No nosso país, no que se refere aos impostos directos, qualquer cidadão entrega ao Estado, em regra, pelo menos 20% do seu rendimento ilíquido. No entanto, os bancos cujos lucros são fabulosos não pagam mais do que 12% ou 13% de IRC. Será isto uma situação natural e, sobretudo, justa? A resposta é não.
  4. Numa rua da localidade onde resido existem, lado a lado, dois estabelecimentos comerciais de portas abertas ao público. Um vende óculos e paga de imposto ao Estado cerca de 20% sobre os lucros obtidos. O outro vende dinheiro e não paga de imposto mais que 13% sobre o rendimento alcançado. Será isto normal no sentido de ser justo? A resposta é também não.

A estes exemplos poderiam juntar-se dezenas de outros, tanto ou mais irracionais do que os referidos. No entanto, e apesar da inaceitabilidade destas anormalidades que são injustiças que nos deviam indignar e, em conformidade, levar-nos a agir, o que se vê é a aceitação generalizada de tudo isto como se de inevitabilidades se tratassem. A sensação que se tem é que uma espécie de cortina de fumo baixou sobre a sociedade portuguesa impedindo parte da sua população de ver e, por via disso, de pensar. Porque assim parece, talvez seja tempo de acendermos os faróis e ver para além da névoa que interpuseram entre nós e a realidade.