Um novo compromisso pela escola pública
18-Out-2007
TEXTO DE CECÍLIA HONÓRIO - Deputada do BE

1.

A igualdade de oportunidades tornou-se o chavão natural da democratização do sistema de ensino. Mas como tem evoluído a escola pública em Portugal no combate às desigualdades sociais?

Qual a dinâmica prevalecente: reprodução e/ou mudança social? A escolarização contribui para a redução das assimetrias territoriais?

As políticas de organização do território e a debilidade das políticas públicas de educação foram escavando hierarquias: há as escolas de “mérito” (aquelas que o governo prefere para as exibições) e as outras (algumas delas, guetos desconhecidos). No meio, uma malha mais difusa, mas nem por isso limpa de critérios de segregação, que se foram banalizando no silêncio (critérios de constituição de turmas, as turmas dos “bons” e as dos “maus”, critérios de atribuição de turmas a professores, entre outros).

Que propostas para denunciar e desfazer as malhas, a visível e a invisível, das desigualdades?

2.

Os pobres aumentaram, a pobreza “envergonhada” também. A acção social escolar é uma vergonha, ainda maior no ensino secundário.

As escolas vão tapando a realidade crua com esquemas assistencialistas.

A defesa da escola pública exige a prioridade, consensual aliás (é conclusão do Debate Nacional de Educação, por exemplo), do trabalho em rede com todos os profissionais e técnicos, dos psicólogos aos mediadores, que acompanhem e apoiem os vários caminhos entre a comunidade, a família, a escola.

E sem intervenção social e sem criação de emprego, não há milagres nem varinhas mágicas para os contextos de partida dos alunos.

Mas não são estas crianças e jovens o maior laço no compromisso de esquerda de agentes de esquerda, a começar pel@s professores?

3.

As desigualdades sociais continuam a transformar-se em desigualdades escolares? A escolarização das mães é um dos mais poderosos marcadores sociais. As taxas de abandono e insucesso precoce são muito mais elevadas entre crianças cujas mães têm baixos níveis de escolaridade. A classe social de origem dos pais fractura os níveis de sucesso entre os filhos das classes favorecidas e os outros*.

Os filhos destes contextos afinam os perfis de filhos-alunos que alimentam as escolas. Os rapazes estão sobrerrepresentados no abandono, entre os que reprovam e aqueles que têm carreiras escolares mais curtas e são, por excelência, os enjeitados dos CEF’s.

No tempo da “energia escolar feminina” (e onde a distância entre rapazes e raparigas no sistema de ensino português é máxima entre classes desfavorecidas e mínima entre favorecidas), não se exige nada às escolas? Estão as escolas preparadas para prevenir estas “fatalidades” de género?

Qual é a sua responsabilidade e a dos seus profissionais na discriminação por classe, género, orientação sexual e etnia, ou são inimputáveis?

4.

Estado a mais ou a menos? A banalização do discurso do Estado a mais oculta a realidade: debilidade do Estado na afirmação de políticas públicas para a educação.

É nesta linha que a recente vaga de autoritarismo também deve ser entendida.

Ela esconde a debilidade do poder mas revela, também, essa espécie de fatalidade na evolução do sistema nacional de ensino: as assimetrias entre discursos, legislação e realidades e a neblina que paira sobre o serviço público de educação como fundador de democracia.

Se o Estado é fraco, a sociedade vacila e, na indecisão, será mais fácil abrir portas à promiscuidades entre o público e o privado.

E se o Estado não foi, e não é, forte na assunção de políticas públicas para a educação, qual o quadro das “autonomias” e o porquê desta onda escola-a-escola?

5.

O impacte da vaga neoliberal deixa mais rasto do que a retórica defensista da escola pública?

O discurso do poder diaboliza os inimigos da escola pública (dos professores à Deco, entre outros), mas a realidade vai desenhando hierarquias claras em nome do “mérito”: entre escolas (escolas de bons e maus resultados) e profissionais (vide concurso para professores titulares). Penetra a gestão por resultados, traduzida numa nova cultura burocrática, a empresarialização do parque escolar (está criada a entidade pública empresarial que tem nas mãos parte do património público do ensino secundário e não há sinais de que o processo estanque) e a selva criada à volta das actividades de enriquecimento curricular são indicadores da fome de mercadorização.

Estará solidamente instalado o mercado da educação em Portugal?

6.

Professores e trabalhadores de educação num beco sem saída?

A representação destes trabalhadores do ensino não superior não se colou nem às especificidades do trabalhado intelectual nem às da função pública. Hoje, o risco é que nem trabalhadores intelectuais nem funcionários públicos.

A fractura da carreira em duas acabou por rebentar com a marca identitária d@s professores que fizeram a democratização da escola pública: a horizontalidade.

Por outro, a precarização deste grupo profissional tem duplos contornos: o do desemprego, da humilhação de deslocações sem quaisquer apoios (realidade com décadas, retenha-se) e o da extracção social, uma vez que são os mais desfavorecidos que continuam a querer ser professores.

A debilidade das representações e equívocos das reivindicações foi agravada pela multiplicação de funções, missões e aumento do horário de trabalho.

É o tempo do bloqueio, do transbordamento: multiplicaram-se as missões e os conteúdos (o saco “curricular” está a rebentar pelas costuras; ao velho acrescentou-se tudo). Como sair?

7.

A batalha do sucesso foi ganha pelo governo? Na debilidade da representação da escola pública e da qualidade de serviço público dos seus profissionais, o insucesso como marca do rigor, de qualidade e de superioridade dos saberes foi impune durante demasiado tempo. Mais torneada pela lei, a retenção na escolaridade obrigatória, que urge discutir, ainda é um peso em dinheiro e vidas.

Mas a batalha foi apenas meio ganha. O governo resiste ao óbvio, à reforma curricular nos segundo e terceiro ciclos, o governo resiste às necessidades dos alunos, incapaz de uma oferta de saberes e aprendizagens para a vida, resiste a perceber que as crianças portuguesas passam demasiado tempo na escola e, na sua coroa de glória, a oferta de enriquecimento curricular no primeiro ciclo, põe mais escola sobre a escola, estoirando com crianças e professores.

Qual é o compromisso de esquerda no combate ao insucesso e ao abandono num contexto de avanço do neoliberalismo?

1. Ver Ana Nunes de Almeida e Maria Manuel

Vieira, A Escola em Portugal, 2006)

2. Ver António Nóvoa,

Evidentemente.