Os caminhos da democracia portuguesa,
conquistada na rua pelo povo português nos meses a seguir ao golpe de Estado de
25 de Abril de 1974, têm tido muitas curvas e contracurvas. De facto, raras
foram as ocasiões em que a democracia económica e social acompanhou a democracia
política. Resultado: o regime democratizou-se na forma, mas oligarquizou-se na
substância com diferenças cada vez mais gritantes entre privilegiados e não
privilegiados. Nunca como hoje as assimetrias entre ricos e pobres foram tão
marcadas na sociedade portuguesa.
Neste contexto, e como seria natural, a democracia foi-se
transformando com o decorrer dos anos num campo facilitador de todos os negócios
que a oligarquização económica e social sempre trás consigo: a corrupção, o
tráfico de influências, a especulação imobiliária e financeira. Em suma, as mil
e uma formas de enriquecimento fácil sem se olhar a meios. E tanto assim é que o
insuspeito bastonário da Ordem dos Advogados tem vindo ultimamente a clamar na
praça pública contra este estado de desaforo moral que, como não pode deixar de
ser, vai minando os alicerces do Estado democrático.
Perante este sinal vermelho, perante este aviso sério à
"navegação", o que se esperava é que o país político tomasse medidas, no mínimo
de fortalecimento da democracia política, de forma a torná-la mais substantiva e
menos formal, o mesmo é dizer que criasse condições para uma participação mais
efectiva dos cidadãos na vida pública o que tem sempre como efeito prático a
diminuição da margem de manobra para o desenvolvimento de todo o tipo de
negócios ilícitos. Isto é o que se esperava. Coisa bem diferente é o que se está
a fazer. E a prova do que afirmo encontra-se na legislação regulamentadora das
eleições do poder local que está a ser "cozinhada" pelos partidos do bloco
central dos interesses, PS e PSD, os grandes responsáveis pelo estado a que o
país chegou, pela simples razão de terem sido estes quem o têm governado.
O poder local, na maioria dos concelhos do País, chegou a
patamares muito baixos de democracia. A estrutura administrativa colegial que em
teoria é a câmara foi-se transformando num órgão crescentemente unipessoal
através do aumento dos poderes da figura presidente da câmara que nem sequer tem
estatuto constitucional no nosso ordenamento jurídico. A assembleia municipal,
por seu lado, reunindo ordinariamente quatro vezes por ano e sem efectiva
capacidade de fiscalização do governo municipal é, cada vez mais, um lugar de
ritual democrático onde nem sequer os reais poderes que possui são exercidos.
Ora, tudo isto é grave, na medida em favorece o desenvolvimento dum caldo de
cultura teoricamente aberto à aceitação da corrupção nas suas diferentes
formas.
Estou, portanto, de acordo que deve haver mudanças na
legislação reguladora das eleições para o poder local mas não no sentido que
estão a ser feitas. Eleições só para a assembleia municipal? Concordo, desde que
o executivo municipal se forme no seio desta assembleia no respeito total pela
proporcionalidade dos votos obtidos por cada força política, não sendo
obrigatório que o presidente da câmara seja o primeiro nome da lista mais
votada. Assim, mais do que em pessoas, haveria de votar-se em programas e as
câmaras continuariam, como tem acontecido até hoje, a ter vereadores dos
partidos minoritários o que é fundamental para uma democracia que se quer viva e
actuante. Reforçar os poderes da Assembleia Municipal? Concordo. Mas para isso é
necessário que a lei imponha a obrigatoriedade destas assembleias reunirem uma
vez por mês, no mínimo durante dois dias, e que lhes dê poderes acrescidos como,
por exemplo, a capacidade de alterar o orçamento e o plano de actividades do
município e a possibilidade de destituir o governo municipal através de rejeição
por maioria de votos.
Se fosse este o caminho seguido não tenho dúvidas de que muitas
das nossas vilas e cidades seriam melhor administradas, num maior respeito pelos
anseios, necessidades e opiniões dos cidadãos. No entanto, o que se prepara é
bem diferente. É a oligarquização da política como desenvolvimento natural da
oligarquização económica e social.
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