O discurso da
humanidade, da solidariedade e da generosidade para com África, que não deixará
de ser feito, é a areia fina com que sempre nos tentam toldar a visão, ou seja,
o entendimento.
No passado fim-de-semana reuniu-se em Lisboa a cimeira
União Europeia (UE) - África. Nas televisões vi e ouvi representantes do
governo português contentes e felizes pela iniciativa, uma vitória da
diplomacia portuguesa, diziam. Nas televisões e nas rádios ouvi falar na nova
era nas relações UE-África e nos chamados "Acordos de Parceria
Económica".
No passado fim-de-semana ouvi falar de muita coisa, mas
não do que era fundamental e urgente ouvir falar. Ouvi referir a limpeza étnica
no Darfur (noroeste do Sudão), mas nada ouvi sobre o aparecimento duma vontade
determinada por parte da comunidade internacional em lhe pôr fim. Ouvi falar em
confrontos tribais, mas ninguém explicou como é que pastores nómadas fazem
bombardeamentos aéreos. Vi e ouvi diplomatas carpir mágoas pelas mortes no
Darfur, mas ninguém falou nas armas e nas balas chinesas que provocam essas
mortes.
Ouvi, sobretudo, falar de Mugabe, presidente do Zimbabwe,
o ditador que não respeita os direitos humanos no seu país. E, porque assim é,
de facto, o Senhor Brown, primeiro-ministro inglês, resolveu, em nome dos
princípios, não vir à cimeira de Lisboa para não se sentar à mesa com tão
odioso ditador. No entanto, enquanto assim se comportava, o Senhor Brown
recebia no seu gabinete, em espírito de fraterna união, esse "grande
democrata" que é o rei da Arábia Saudita, conhecido por ser o líder duma das
monarquias teocráticas mais obscurantistas e opressoras do mundo. Como se
verifica, o Senhor Brown é mesmo um homem de princípios. Os mesmos princípios
que regem, aliás, aqueles diplomatas zelosos defensores da liberdade, da
democracia e dos direitos humanos, como é o caso do nosso ministro dos Negócios
Estrangeiros que, ao mesmo tempo que criticava Mugabe, cumprimentava
efusivamente Blaise Compaoré do Burkina Fasso, financiador conhecido de
genocídios como os que se deram no Ruanda, na Serra Leoa, na Libéria e na Costa
do Marfim, ou Omar El Bachir do Sudão, patrocinador da limpeza étnica no
Darfur, ou José Eduardo dos Santos no poder em Angola desde 1979, país onde as
liberdades não são respeitadas e a corrupção domina nas mais altas instâncias
do governo.
Ouvi falar de África, mas não ouvi falar do "muro de
Marrocos" que assinala e perpetua a dominação de Marrocos sobre o Saara
Ocidental. Trata-se dum muro minado, vigiado por milhares de soldados e que é,
em dimensão, sessenta vezes maior que o ex-muro de Berlim. É mais um muro da
nossa vergonha como é aquele que os Estados Unidos da América estão a construir
na fronteira mexicana, como é o muro na Cisjordânia ao serviço da ocupação
israelita das terras palestinianas, como é o muro de arame farpado que liga
Ceuta a Melilla no norte de África.
Do muro de Berlim, quando existia, todos os dias dele se
falava. Entretanto, este muro caiu, e ainda bem que caiu, mas outros muros
igualmente infames se ergueram. E, no entanto, sobre estes só o silêncio. O
silêncio da hipocrisia. O silêncio das lágrimas de crocodilo. O silêncio dos
amados princípios do Senhor Brown.
Ouvi falar de África e de Europa, de ajuda e
desenvolvimento, mas não ouvi falar do que efectivamente se está a tratar nesta
cimeira. É sempre a mesma poeira para os olhos dos cidadãos.
Desde 1963, com a assinatura da Convenção de
Yaundé, nos Camarões, que a União Europeia, na altura CEE (Comunidade Económica
Europeia), estabeleceu acordos comerciais com África com base em vantagens
recíprocas para os dois continentes. A título de exemplo refira-se as vantagens
tarifárias na Europa para as exportações dos países africanos e o financiamento
europeu à edificação, em África, de infra estruturas e de programas de fomento
agrícola. A esta convenção, e dentro deste espírito, sucederam-se as de Laomé
I, na República do Togo (1975), Laomé II (1979) e de 1984 a 1995 Laomé III, IV e
V. Com a criação, em 1995, da OMC (Organização Mundial do Comércio), um dos
instrumentos da política neoliberal, entretanto emergente, a Europa passou a
impor a África a política que melhor servia os interesses do capitalismo
europeu e mundial nesta sua fase fortemente predadora.
As vantagens tarifárias para os produtos
africanos desapareceram e a solidariedade também. A livre concorrência entre
economias tão diferentes passou a ser a regra, com todos os efeitos negativos
daí decorrentes para o continente africano. Assim, o que interessa hoje às
empresas europeias é terem a possibilidade de investir em África com total
liberdade, o que significa condições de investimento onde não existam
exigências salariais, nem legislação de protecção social aos trabalhadores, nem
qualquer obrigação de defesa do ambiente. Foi, pois, para garantir tudo isto
que, em Lisboa, a presidência portuguesa da União Europeia juntou os
representantes dos países do continente africano.
O discurso da humanidade, da solidariedade e da generosidade para com
África, que não deixará de ser feito, é a areia fina com que sempre nos tentam
toldar a visão, ou seja, o entendimento.
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