Por ironia dum destino cruel, Paulo Portas já não é
ministro do Mar nem da Defesa. Em 2002, um milagre de Fátima tirou-lhe a
hipótese de combater a maré negra do Prestige; em 2004, deu uma amostra
da sua raça ao enviar a Marinha contra o barco das Women on Waves – ganhou a “batalha
naval” mas perdeu a guerra no referendo ao aborto, o acontecimento deste ano de
2007. E ontem perdeu a oportunidade histórica de demonstrar todo o seu génio
militar no combate aos 23 mouros que invadiram a Culatra, oriundos de Marrocos –
qual quinta-coluna dos infiéis, projectando a reconquista da Península para aqui
restaurar o Al-Andaluz… e o Al-Gharb.
Mas afinal quem são estes invasores? Um grupo de 23
cidadãos marroquinos, entre os quais cinco mulheres, que chegaram a terra cheios
de fome, sede e frio… Alguns ainda encontraram forças para tentar uma fuga para
a liberdade no deserto da Culatra, incluindo uma jovem de 15 anos que acabou por
ser conduzida ao Hospital de Faro, acompanhada dum colega com sintomas de
hipotermia. Perante este quadro, é difícil evitar o vómito ao ouvir esse campeão
da demagogia chorar lágrimas de crocodilo sobre “os dramas humanos” destes
náufragos que andaram quatro dias à deriva para, logo a seguir, reclamar “a
máxima firmeza contra a imigração ilegal”. Um tiro pela culatra?
Os próprios responsáveis da Marinha e o Director
Regional do SEF reconheceram: “tudo indica que Portugal não fosse o destino
inicial” destes imigrantes que, no entanto, hoje vão a tribunal como se fossem
criminosos. Independentemente dos ventos e tempestades que os desviaram da rota
provável para além do estreito de Gibraltar, este episódio tem o mérito de
confrontar a sociedade portuguesa com o drama da imigração ilegal, agora por via
marítima; quanto às fronteiras terrestres, há muito que a realidade nua e crua é
uma política de portas fechadas e janelas escancaradas. Contam-se por largas
centenas os imigrantes africanos que chegam até nós, vindos do sul de Espanha,
depois de ultrapassarem o Cabo Bojador, em pirogas bem mais frágeis que as
caravelas do século XV…
As causas desta autêntica epopeia são conhecidas: a
desesperança de vida em África cresce quase na proporção directa das
necessidades de mão-de-obra barata nos mercados europeus. Enquanto um visto
legal para a Europa custa 4 mil euros e um tempo médio de espera de um ano, uma
passagem de piroga custa 150 euros, como afirmava um participante senegalês na
recente Cimeira Alternativa Europa-África. Quem já nada tem a perder arrisca,
mesmo se a probabilidade de ficar sepultado no fundo do oceano rondou os 20% em
2006 – bem inferior à hipótese de arranjar trabalho ilegal.
Suprema hipocrisia: depois de as autoridades expulsarem
uns quantos imigrantes para as televisões, a grande maioria sai das Canárias e é
abandonada em estações de comboio de Sevilha, Madrid ou Barcelona; tal e qual o
que acontece em Itália, com milhares de imigrantes transportados da ilha de
Lampedusa para o continente, com a recomendação expressa para “abandonarem o
país”… que toda a gente sabe que ninguém vai cumprir! A própria lógica de
mercado, tão incensada pelos governos neoliberais, assim o determina nesta
Europa que precisa da mão-de-obra imigrante como pão para a boca, até para
combater a crise demográfica e sustentar os sistemas de segurança social. A
escolha é apenas uma: imigração ilegal e mercado negro, a coberto da hipocrisia
dos governos, ou abertura de canais acessíveis e expeditos de imigração legal e
com direitos.
A outra face desta moeda, essa sim dramática, é a
sangria permanente das riquezas de África: não só o saque continuado das
matérias-primas e o desastre ambiental provocado pelas transnacionais, mas
sobretudo a perda dos melhores recursos humanos que procuram emigrar, por todos
os meios. A inversão deste estado de coisas, de forma a permitir o regresso de
quadros e recursos acumulados na diáspora, é uma empreitada de longa duração que
não será bem sucedida se os povos africanos ficarem à espera das dádivas
neocoloniais. Assim ficou demonstrado na recente Cimeira de Lisboa, face à
tentativa de imposição dos EPA ou APE – acordos de parceria económica – das
potências europeias com agrupamentos forçados de Estados africanos, ao pior
estilo da Conferência de Berlim de 1884/85 – imposição recusada por Estados da
dimensão da África do Sul, Nigéria ou Senegal.
Propaganda socrática à parte, a solidariedade entre
africanos e europeus não passa pelos governos e exige, no caso da Culatra, que
os náufragos marroquinos sejam protegidos como vítimas de tráfico humano.
Neste “Natal dos Tristes”, o Zeca dedicar-lhes-ia,
certamente, “Os Índios da Meia-Praia”.
Alberto Matos – Crónica semanal na
Rádio Pax – 18/12/2007
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