A sensação que se tem é que uma
espécie de cortina de fumo baixou sobre a sociedade portuguesa impedindo parte
da sua população de ver e, por via disso, de pensar. Porque assim parece,
talvez seja tempo de acendermos os faróis e ver para além da névoa que
interpuseram entre nós e a realidade.
As sociedades humanas possuem aspectos deveras curiosos.
Um deles prende-se com essa coisa espantosa e, ao mesmo tempo fascinante, que
são as pessoas aceitarem como fazendo parte da ordem natural do mundo factos ou
situações que, justamente, nada têm de natural ou normal. E isto acontece
basicamente por uma de duas ordens de razões: ou porque as pessoas nunca se
interrogaram e, em conformidade, não pensaram sobre o que todos aceitam, incluindo
as próprias, mas que não é racional fazê-lo ou, reflectindo, chegaram a
conclusões tão afastadas do que é publicamente visto como normal que logo
"apagaram" tais conclusões do seu intelecto e passaram à frente
convencidos de que só poderiam estar errados.
Eis alguns exemplos para que se perceba melhor do que
estou a falar.
- Em Portugal, como em qualquer outro país, a riqueza
produzida resulta basicamente de dois factores: capital e trabalho. Isto
significa que no acto de produção intervêm os donos do capital que pagam
salários, matérias-primas, máquinas, etc., trabalhadores que vendem a sua força
de trabalho. Até aqui tudo normal. A anormalidade está no facto de a riqueza
assim produzida ser posteriormente distribuída de forma totalmente desequilibrada,
uma vez que, em regra, só um terço desta é apropriada pelo mundo do trabalho.
Será que isto acontece porque o capital é mais importante que o trabalho e por
isso tem de ser melhor remunerado? Atentemos na seguinte situação hipotética.
Se colocarmos numa floresta um capitalista com um saco cheio de milhões de
euros e este disser para o capital – "constrói uma casa" – nada
surgirá da natureza. Nem uma nota dará um passo. No entanto, se em vez do
capital colocarmos na dita floresta um grupo de trabalhadores e lhe dissermos –
"construam uma casa" – alguma coisa se elevará da natureza, mesmo que
tosca por falta de ferramentas necessárias. Daqui se prova que pode haver
produção de riqueza sem capital, mas que tal nunca acontecerá sem a força de
trabalho. Assim sendo, será que é lógico, racional, natural e, sobretudo, justo
que os donos do capital se apropriem da maior fatia da riqueza produzida, como
acontece em Portugal e em outros países ditos civilizados, quando o que
verdadeiramente conta é o trabalho? O não como resposta parece não merecer
qualquer dúvida.
- Em Portugal, como em qualquer outra sociedade
organizada, cidadãs e cidadãos pagam impostos para que o Estado possa cumprir
as suas obrigações para com todos nós. Estes impostos que alimentam o erário público
são de dois tipos: directos e indirectos. Os directos incidem sobre as pessoas
singulares e colectivas, são os casos do IRS e IRC. Os indirectos reportam-se
às transações efectuadas, destacando-se aqui o IVA. Será que é justo, logo
normal, que num Orçamento de Estado, como é o português, as receitas
provenientes dos impostos indirectos sejam superiores às obtidas a partir dos
impostos directos? A resposta é não pelas razões que a seguir se apontam. Os
impostos indirectos, caso do IVA, para poderem ser operacionais têm que ser
iguais para todos os consumidores independentemente dos seus rendimentos.
Assim, quando, por exemplo, duas pessoas, uma ganhando dois mil euros e outra
somente trezentos, compram um quilo de carne, ambas estão a pagar o mesmo imposto,
o que é injusto pois possuem rendimentos diferentes, embora a
"barriga" seja igual. O IRS e o IRC ao serem cobrados à percentagem
são justos, pois quem mais ganha, mais paga. Então, neste contexto, não seria
normal e, sobretudo, justo que a maior parte das receitas do Estado fossem
provenientes dos impostos directos? A resposta é sim sem margem para dúvidas.
- No nosso país, no que se refere aos impostos
directos, qualquer cidadão entrega ao Estado, em regra, pelo menos 20% do seu
rendimento ilíquido. No entanto, os bancos cujos lucros são fabulosos não pagam
mais do que 12% ou 13% de IRC. Será isto uma situação natural e, sobretudo,
justa? A resposta é não.
- Numa rua da localidade onde resido existem, lado a
lado, dois estabelecimentos comerciais de portas abertas ao público. Um vende
óculos e paga de imposto ao Estado cerca de 20% sobre os lucros obtidos. O
outro vende dinheiro e não paga de imposto mais que 13% sobre o rendimento
alcançado. Será isto normal no sentido de ser justo? A resposta é também não.
A estes exemplos poderiam juntar-se dezenas
de outros, tanto ou mais irracionais do que os referidos. No entanto, e apesar
da inaceitabilidade destas anormalidades que são injustiças que nos deviam
indignar e, em conformidade, levar-nos a agir, o que se vê é a aceitação
generalizada de tudo isto como se de inevitabilidades se tratassem. A sensação
que se tem é que uma espécie de cortina de fumo baixou sobre a sociedade
portuguesa impedindo parte da sua população de ver e, por via disso, de pensar.
Porque assim parece, talvez seja tempo de acendermos os faróis e ver para além
da névoa que interpuseram entre nós e a realidade.
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