TEXTO DE CECÍLIA
HONÓRIO - Deputada do BE
1.
A igualdade de oportunidades tornou-se o chavão natural da
democratização do sistema de ensino. Mas como tem evoluído a escola pública em
Portugal no combate às desigualdades sociais?
Qual a dinâmica prevalecente: reprodução e/ou mudança
social? A escolarização contribui para a redução das assimetrias
territoriais?
As políticas de organização do território e a debilidade
das políticas públicas de educação foram escavando hierarquias:
há as escolas de “mérito” (aquelas que o
governo prefere para as exibições) e as outras
(algumas delas, guetos desconhecidos). No meio, uma
malha mais difusa, mas nem por isso limpa de
critérios de segregação, que se foram banalizando no
silêncio (critérios de constituição de turmas,
as turmas dos “bons” e as dos “maus”, critérios de atribuição
de turmas a professores, entre
outros).
Que propostas para denunciar
e desfazer as malhas, a visível e a invisível,
das desigualdades?
2.
Os pobres aumentaram, a pobreza
“envergonhada” também. A acção social escolar
é uma vergonha, ainda maior no ensino secundário.
As escolas vão tapando a realidade crua
com esquemas assistencialistas.
A defesa da escola pública exige a
prioridade, consensual aliás (é conclusão do Debate Nacional de
Educação, por exemplo), do trabalho em rede
com todos os profissionais e técnicos, dos psicólogos
aos mediadores, que acompanhem e apoiem os
vários caminhos entre a comunidade, a família, a
escola.
E sem intervenção social e sem criação de
emprego, não há milagres nem varinhas mágicas para os
contextos de partida dos alunos.
Mas não são estas crianças e jovens
o maior laço no compromisso de esquerda de
agentes de esquerda, a começar pel@s
professores?
3.
As desigualdades sociais continuam a
transformar-se em desigualdades escolares? A escolarização
das mães é um dos mais poderosos marcadores
sociais. As taxas de abandono e insucesso
precoce são muito mais elevadas entre crianças
cujas mães têm baixos níveis de escolaridade. A classe
social de origem dos pais fractura os níveis
de sucesso entre os filhos das classes favorecidas e os
outros*.
Os filhos destes contextos afinam os
perfis de filhos-alunos que alimentam as escolas. Os rapazes
estão sobrerrepresentados no abandono, entre
os que reprovam e aqueles que têm carreiras escolares
mais curtas e são, por excelência, os
enjeitados dos CEF’s.
No tempo da “energia escolar feminina” (e
onde a distância entre rapazes e raparigas no sistema de
ensino português é máxima entre classes
desfavorecidas e mínima entre favorecidas), não se exige
nada às escolas? Estão as escolas preparadas
para prevenir estas “fatalidades” de género?
Qual é a sua
responsabilidade e a dos seus profissionais na discriminação
por classe, género, orientação sexual e etnia,
ou são inimputáveis?
4.
Estado a mais ou a menos? A banalização
do discurso do Estado a mais oculta a realidade: debilidade
do Estado na afirmação de políticas públicas
para a educação.
É nesta linha que a recente vaga de
autoritarismo também deve ser entendida.
Ela esconde a debilidade do poder mas
revela, também, essa espécie de fatalidade na evolução
do sistema nacional de ensino: as assimetrias
entre discursos, legislação e realidades e a neblina que
paira sobre o serviço público de educação como
fundador de democracia.
Se o Estado é fraco, a sociedade vacila
e, na indecisão, será mais fácil abrir portas à promiscuidades
entre o público e o privado.
E se o Estado não foi, e não é, forte
na assunção de políticas públicas para a
educação, qual o quadro das “autonomias” e o porquê desta
onda escola-a-escola?
5.
O impacte da vaga neoliberal deixa mais
rasto do que a retórica defensista da escola
pública?
O discurso do poder diaboliza os inimigos
da escola pública (dos professores à Deco, entre outros),
mas a realidade vai desenhando hierarquias
claras em nome do “mérito”: entre escolas (escolas
de bons e maus resultados) e profissionais
(vide concurso para professores titulares). Penetra a
gestão por resultados, traduzida numa nova
cultura burocrática, a empresarialização do parque escolar
(está criada a entidade pública empresarial
que tem nas mãos parte do
património público do ensino secundário e não há sinais
de que o processo estanque) e a selva criada à
volta das actividades de enriquecimento curricular
são indicadores da fome de mercadorização.
Estará
solidamente instalado o mercado da educação em
Portugal?
6.
Professores e trabalhadores de educação
num beco sem saída?
A representação destes trabalhadores do
ensino não superior não se colou nem às especificidades
do trabalhado intelectual nem às da função
pública. Hoje, o risco é que nem trabalhadores
intelectuais nem funcionários
públicos.
A fractura da carreira em duas acabou por
rebentar com a marca identitária d@s professores que
fizeram a democratização da escola pública: a
horizontalidade.
Por outro, a precarização deste grupo
profissional tem duplos contornos: o do desemprego,
da humilhação de deslocações sem quaisquer
apoios (realidade com décadas, retenha-se) e o
da extracção social, uma vez que são os mais desfavorecidos
que continuam a querer ser professores.
A debilidade das representações e
equívocos das reivindicações foi agravada pela multiplicação
de funções, missões e aumento do horário de
trabalho.
É o tempo do bloqueio, do
transbordamento: multiplicaram-se as missões e
os conteúdos (o saco “curricular” está a rebentar
pelas costuras; ao velho acrescentou-se tudo).
Como sair?
7.
A batalha do sucesso foi ganha pelo
governo? Na debilidade da representação da escola pública
e da qualidade de serviço público dos seus
profissionais, o insucesso como marca do
rigor, de qualidade e de superioridade
dos saberes foi impune durante demasiado
tempo. Mais torneada pela lei, a retenção na escolaridade
obrigatória, que urge discutir, ainda é um
peso em dinheiro e vidas.
Mas a batalha foi apenas meio ganha. O
governo resiste ao óbvio, à reforma curricular nos segundo
e terceiro ciclos, o governo resiste às
necessidades dos alunos, incapaz de uma oferta de saberes e
aprendizagens para a vida, resiste a perceber
que as crianças portuguesas passam demasiado tempo
na escola e, na sua coroa de glória, a oferta
de enriquecimento curricular no primeiro ciclo, põe mais
escola sobre a escola, estoirando com crianças
e professores.
Qual é o compromisso de esquerda
no combate ao insucesso e ao abandono num
contexto de avanço do
neoliberalismo?
1. Ver Ana Nunes de Almeida e Maria
Manuel
Vieira, A Escola em Portugal,
2006)
2. Ver António Nóvoa,
Evidentemente.
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