Beja
viveu ontem um dia anormal. A circulação automóvel esteve cortada no centro da
cidade, num grande anel que ia do Hospital Velho ao Balneário, passando pelo
Largo dos Correios e por trás do Jardim Público. Não era o Dia sem Carros que,
aliás, tem caído em desuso, nem se tratava de devolver a rua aos peões. De
tanta fartura, o pobre desconfia, dizia uma mulher nas Portas de Mértola… E, em
cada esquina deste vasto perímetro, um polícia. Era a visita oficial dos
“príncipes das Astúrias”, Felipe e Letícia, arrastando consigo a histeria
securitária que sempre os acompanha e se vem reforçando, com o crescer da
contestação à monarquia em Espanha.
Protocolo
de Estado ou mera cortesia, dirão alguns. No exercício do direito ao
contraditório, dedico esta crónica a todos os bejenses que não se revêem na
comédia real que teve lugar nas imediações da Praça da República, nem na
entrega da chave de ouro da cidade aos últimos representantes da dinastia de Bourbon,
com um enorme rasto de despotismo por quase todas as cortes europeias. Este gesto
não honra a cidade, nem o presidente PCP da Câmara Municipal, nem o cidadão que
estava ao seu lado e ocupa, provisoriamente (é assim na República!), a chefia
do Estado português.
Esta
visita dos Bourbon ao Alentejo foi justificada pela entrega do prémio “Ponte de
Alcântara” ao empreendimento de Alqueva, “distinguindo a competência da
engenharia portuguesa e os poderes públicos” que o executaram. Um bom pretexto,
dirão. Infelizmente, Sua Alteza não pediu desculpa pelo facto de a nascente dos
Olhos do Guadiana, a 800 Km da foz, estar seca devido à existência de 60 mil
furos clandestinos, donde são extraídos 1200
hectómetros cúbicos de água – 93% dos quais utilizados na agricultura de
regadio intensivo. E os agrários espanhóis estão a praticar, no perímetro de
Alqueva, o mesmo regadio intensivo, aproveitando a quota portuguesa do azeite,
entre outras.
Este alerta não tem nada de nacionalista: é claro que o
desenvolvimento sustentável é um combate global e, neste caso, deve ser travado
conjuntamente dos dois lados da fronteira. Aliás, foram as ONG espanholas “Ecologistas
em Acção”, Greenpeace, SEO/Life e WWF/Adena que denunciaram o desastre nos aquíferos
subterrâneos de Castela-La Mancha, no Alto Guadiana: a extracção maciça de água
para rega interrompeu o caudal normal do rio na província de Ciudad Real e as
primeiras águas que este recebe são originárias do afluente Bullaque, a mais de
120 Km da nascente original. E o desastre prolonga-se até Badajoz – cidade com
mais de 150 mil habitantes, cujos esgotos são despejados na albufeira de
Alqueva quase sem tratamento. A situação é tão grave que o Ministério do
Ambiente espanhol já deu instruções à Confederação Hidrográfica do Guadiana
para travar a captação de água dos aquíferos subterrâneos. Resta saber se, no
âmbito do Convénio Luso-Espanhol, o governo português vai manter a tradicional posição
de vénia face a Madrid.
Em
Alqueva, Felipe de Bourbon discursou sobre a urgência de “lançar novas pontes”
entre os dois países, mas calou-se sobre a arrogância espanhola em relação às
obras da velha Ponte da Ajuda. Como já não estamos em época de “conquistas e
reconquistas”, uma dessas pontes pode e deve ser Olivença, travando a ameaça de
exterminação da língua portuguesa, agravada pelo franquismo com a sua proibição
na escola pública e prosseguida até hoje. Mas há sinais encorajadores, como alguma
abertura recente das autoridades locais, bem como o interesse de jovens
oliventinos em redescobrir as suas raízes histórico-culturais portuguesas e
alentejanas. Que Portugal não tenha vergonha de colocar o problema diplomático,
assim como Espanha não a tem em relação a Gibraltar.
Voltando
à monarquia e aos Bourbon, decapitados pela Revolução Francesa em nome da
Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade: a História já provou à saciedade que,
se é altamente improvável a um rei estadista suceder outro estadista, é bem
provável que a um imbecil suceda outro imbecil. Até em Inglaterra a monarquia
está em crise, utilizando ou destruindo (se for caso disso), “princesas do
povo” como Diana ou Letícia. E, se à boleia de um Saramago, passou pela cabeça
do príncipe das Astúrias ser o “nosso” Filipe IV, é melhor ir tirando o
cavalinho da chuva! Até porque a contestação à sua monarquia nunca foi tão
grande, sobretudo nos jovens, da Catalunha à Andaluzia, da Galiza a Euskadi e
ao coração de Madrid. Em memória dos mártires da República e dos
revolucionários garroteados há 32 anos, no último suspiro de Franco: “España,
manãna, será republicana!”.
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