Hoje é consensual que a água, um bem imprescindível à
vida, é escasso e que, por força das alterações climáticas, será ainda mais
escasso nos próximos cinquenta anos. Também é consensual que num futuro muito
próximo se corre o risco de a água não chegar para todos. E quando isso
acontecer a guerra será inevitável. A luta pela vida, pela sobrevivência, a
isso conduzirá inevitavelmente.
Perante este quadro, infelizmente bem real, a primeira questão
que se deve colocar é esta: como foi possível chegarmos aqui? A resposta não é
simples, nem linear. No entanto, é possível dizer, sem receio de erro, que
grande parte da responsabilidade por esta situação se deve à adopção de modelos
de desenvolvimento económico onde a primeira e quase única motivação foi e é a
procura do lucro a todo o custo. E isto que é uma evidência, mas de que pouca
gente fala, devia estar sempre bem presente para que as receitas para resolver
o problema da água não passem pelas soluções que criaram esse mesmo problema,
como está a acontecer em Portugal e em outras regiões do mundo onde o
capitalismo selvagem à moda do século XIX está a tomar conta das diferentes
políticas governamentais e, o que é ainda mais grave, da forma de ver o mundo
por parte significativa dos cidadãos.
Água, bem fundamental à vida e património comum de todos.
Num quadro onde se aponta para a sua escassez que fazer para a melhor gerir? A
solução parece-me óbvia: a adopção dum modelo de gestão capaz de garantir
quatro coisas: 1- Que ninguém fique privado de água por motivos económicos, ou
seja, que qualquer situação de pobreza não seja impeditiva do acesso á água; 2-
Que o tarifário a implementar pelo consumo da água desonere os consumidores de
poucas posses e onere fortemente aqueles que a esbanjam sem necessidade; 3- Que
nenhum aglomerado populacional, por mais pequeno que seja, fique impedido de
aceder à água por muito que isso custe em termos de investimento; 4- Que a
distribuição da água seja alvo dum tratamento científico adequado de forma que
os seus padrões de qualidade junto do consumidor sejam sempre elevados.
Bem, sendo assim, qual o modelo que garante estas quatro
condições, a meu ver consensuais? Um modelo onde um bem comum é apropriado por
algumas empresas para ser transformado num negócio? Um modelo onde o objectivo
é transformar a água numa mercadoria para através dela se obter o máximo lucro
possível, o objectivo natural de qualquer homem de negócios? Ou um modelo de
gestão pública da água onde o Estado (ou as autarquias locais que também são
Estado), com o dinheiro de todos nós recolhidos através dos impostos, controla
todo o processo da gestão da água tendo como única preocupação o bem-estar das
populações e não o lucro? A resposta parece não merecer dúvidas para todos
aqueles que possuem respeito pela humanidade e que conseguem ver para além dos
euros das suas contas bancárias.
Apesar deste consenso, o que assistimos hoje em Portugal?
A resposta não merece dúvidas e é deveras preocupante. Hoje em Portugal
assistimos a uma política deliberada do Governo destinada a transformar a água
num negócio e à capitulação das autarquias locais face a esta vontade de
Sócrates e seus ministros, tudo isto feito nas costas dos cidadãos que vivem no
total desconhecimento do que se está a passar, eles que são o soberano, ou
seja, quem mais ordena, aqueles que através do seu voto têm o poder de tirar e
pôr governos e executivos camarários.
Através de legislação vária os governos de bloco central
(PSD e PS) vêm criando dificuldades às autarquias locais. O objectivo é
“impedir” que os municípios se organizem em associações ou em empresas
intermunicipais, de capitais exclusivamente públicos, destinadas a gerir a
distribuição da água em alta ou em baixa fora da lógica da procura do lucro que
é a primeira e a principal lei do mercado. O expediente utilizado é simples e
refinado. Apela-se aos municípios que se associem à empresa do Estado, “Águas
de Portugal”, oferecendo-se-lhes em troca garantia de dinheiro para investimento
e uma gestão pública da água. No entanto, enquanto isto fazem, e à medida que a
holding estatal vai crescendo economicamente em resultado destes acordos com as
autarquias, o Governo vai preparando a sua privatização, ou seja, a entrega da
empresa “Águas de Portugal” às empresas do ramo, por força da sua privatização
em bolsa.
A esta política, os executivos camarários do Alentejo, que
foram eleitos para gerir o património público e não para o entregarem à
iniciativa privada, entraram num processo de capitulação. Não aceitaram a
proposta do Governo e avançaram para uma solução que só formalmente é diferente
desta. A solução adoptada passa pela constituição de empresas intermunicipais
onde 51% do capital é das autarquias e 49% é do mundo dos negócios, como se
assim a água não fosse transformada numa mercadoria destinada, portanto, à
obtenção de lucro o que, no caso, é incompatível com os interesses público e de
preservação da vida. E foi com esta opção que avançaram.
Torpedeados pelo Governo, que nunca gostou desta solução na medida em
que não favorecia a “engorda” das “Águas de Portugal”, viram a sua proposta
rejeitada por Bruxelas. Resultado: a capitulação traduzida na tentativa de
saída híbrida para a chantagem do Governo deu em nada. Tivessem as autarquias
feito o que era sua obrigação – governar com o povo e não nas suas costas – e,
muito provavelmente, hoje teríamos empresas intermunicipais de capitais
exclusivamente públicos com as suas candidaturas aprovadas em Bruxelas.
|