Assisti ontem a um debate sobre os sistemas de abastecimento de
água em alta, uma iniciativa da Câmara Municipal de Castro Verde que saúdo, com
alguns senãos. O primeiro foi a hora escolhida: 3 da tarde de segunda-feira, o
que afasta irremediavelmente a esmagadora maioria dos munícipes. Foi dito que o
objectivo fundamental era o esclarecimento dos “decisores”, isto é, dos
autarcas – o que constitui desde logo uma grave limitação, em matéria de tamanho
interesse público.
Depois foi o formato adoptado: não propriamente um debate, antes
uma palestra para ouvir os três oradores convidados: Francisco Manuel Pinto,
representante da Audiplano; Marques Ferreira, ex-presidente da EDIA, agora em
representação das Águas de Portugal; e Manuel Camacho, presidente da AMALGA –
Associação de Municípios Alentejanos para a gestão do Ambiente – que integra nove
municípios do Distrito de Beja e cuja candidatura ao sistema intermunicipal de
abastecimento de água em alta foi chumbada em Bruxelas, no início de 2007.
Após a introdução, a cargo do presidente da CM de Castro Verde,
Fernando Caeiros, os três ilustres palestrantes falaram durante cerca de três
horas para uma audiência de 50 a 60 pessoas, em grande maioria autarcas dos
diversos municípios envolvidos. Quando o debate se generalizou, a partir das 6
e meia da tarde, a plateia já estaria reduzida a metade, tendo os últimos
resistentes aguentado até perto das 8 da noite. Até pela importância do tema,
este é um formato totalmente desadequado para quem esteja interessado em
fomentar a participação cidadã.
Sem a pretensão de fazer aqui o resumo de tanta oratória e, menos
ainda, dos pormenores técnicos em que se perdeu demasiado tempo, destaco o sumo
político das intervenções. Marques Ferreira salientou o domínio que as Águas de
Portugal já têm sobre os sistemas de abastecimento em alta e saneamento de 205
municípios portugueses. Este monopólio, participado pela Direcção Geral do
Tesouro e pela CGD, actua ao mesmo tempo como parceiro e árbitro, com todas as
armas de sedução sobre os pequenos municípios, a quem pode ditar as regras do
jogo. E gaba-se ainda de ser 100% público – por enquanto: Marques Ferreira só
não conseguiu explicar a próxima entrada das Águas de Portugal na bolsa e a
óbvia abertura aos capitais privados: as transnacionais disputam este sector,
hoje em dia mais lucrativo do que o petróleo.
A Manuel Camacho coube o papel ingrato de justificar o insucesso
da candidatura da AMALGA em Bruxelas e de tentar suster a deserção de mais
municípios do sistema intermunicipal: Mértola e Ourique já estão a negociar com
as Águas de Portugal; Almodôvar, Castro Verde e Barrancos hesitam mas exigem uma
solução rápida, “no prazo máximo de um ou dois meses”, como frisou Fernando
Caeiros. Ora a nova candidatura intermunicipal e o concurso público
internacional para escolher um parceiro privado são coisa para muitos meses, sem
sequer ter garantido financiamento comunitário. O tempo joga contra este
projecto, demonstrando a inutilidade da cedência de 49% do capital das águas do
Alentejo Sul a uma qualquer multinacional, em violação clara dos princípios de
defesa da água pública e até da propaganda do partido maioritário na AMALGA, o
PCP.
No final da palestra, no seguimento dos apelos de vários autarcas
e das declarações de abertura ao diálogo por parte de Manuel Camacho e Marques
Ferreira, ficou a pairar um possível acordo para-social entre a AMALGA e as Águas
de Portugal, em torno de “uma solução técnica aceitável por ambas as partes”. Só
que o problema essencial da gestão da água não é técnico mas sim político, como
frisou Constantino Piçarra, do BE, e também o deputado do PCP, José Soeiro. O
pragmatismo e a “pressa de encontrar uma solução” põem em causa a decisão democrática
das populações que não foram ouvidas nem achadas, na última campanha eleitoral,
sobre a questão da água.
Qualquer que seja o “cozinhado” a sair de eventuais negociações
entre a AMALGA e as Águas de Portugal, é iminente o perigo de privatização da
água – para já a distribuição em alta; amanhã, perante o aperto financeiro das
autarquias, a distribuição em baixa, isto é, até às nossas torneiras, como já prevêem
os estatutos das águas do Alentejo Sul. Depois de anos e anos de negociações de
gabinete, é urgente dar a palavra aos cidadãos: poucas matérias justificam
tanto um referendo local, pois a água é mesmo uma questão de vida ou de morte. E
o título desta crónica não deriva de um súbito revivalismo do PREC. É hoje muito
claro que só o povo pode defender a água pública.
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